Sabia que Portugal foi dos países que mais envelheceu na União Europeia nos últimos 10 anos? E sabia que está entre os mais envelhecidos disputando frequentemente o título do país da União com a idade mediana mais elevada? Ainda assim o que gastamos em saúde (pública e privada) tem um peso no PIB próximo da média da União Europeia.
1. O envelhecimento esquecido
Um dos erros de análise quando se estuda a despesas pública e privada em Saúde advém de esquecermos que o país está em processo de envelhecimento. Comparar a despesa de um ano com o outro, olhando para os mesmos indicadores, ignorando que a população que procura cuidados de saúde está em transformação é um bom caminho para cometer erros graves com consequências muito reais na vida de demasiadas pessoas.
Defender que o objetivo é garantir mais e melhor serviço por cada euro aplicado, sim, é uma orientação inatacável e é também uma orientação que nunca será plenamente realizada no sentido em que há sempre oportunidades para encontrar usos mais eficientes, há sempre uma componente de inovação que pode alterar as premissas e introduzir ganhos de produção para os mesmos recurso.
Gastar ou investir melhor é uma espécie de utopia fundadora, seja na saúde ou em qualquer outra área em que se gerem recursos escassos e deve ser das primeiras e permanentes que devem guiar o trabalho.
2. A falácia do “Tudo o resto constante”
Mas se atendermos com rigor às palavras, “gastar melhor” nada nos diz de definitivo sobre gastar mais, sobre gastar menos ou até sobre gastar o mesmo.
Se tudo resto fosse constante, ou seja, se o única coisa a mudar no mundo da Saúde fosse a forma de gerir, os procedimentos, as tecnologias, ou até o combate à corrupção e ao desperdício mas estivéssemos sempre perante o mesmo número de doentes, o mesmo tipo de doentes e doenças, bom, então, nesse mundo de ficção, talvez um punhado de indicadores financeiros (tipicamente rácios de produção acompanhados pela soma global do investimento/despesa) pudessem ser guiados para baixo pelo esforço de eficiência sobre os temas apontados no início da frase.
Mas se o resto não está constante, se o número de utentes aumenta, se a sua idade média aumenta, se se quiser assegurar o mesmo nível de serviço mantendo agora tudo o resto constante mas do lado dos rácios de produção, então é impossível que a despesa global não suba.
| Ano | Despesa corrente pública em saúde | ||||
| Public current expenditure on health | |||||
| Valor | Taxa variação nominal | % do PIB | % da despesa corrente | Per capita | |
| Year | Value | Change rate of value | % of GDP | % of Current expenditure | |
| 106€ | % | % | % | € | |
| 2023Po | 17 180,4 | 3,1 | 6,4 | 63,9 | 1 624,14 |
| 2024Pe | 18 886,5 | 9,9 | 6,6 | 64,7 | 1 767,98 |
| Ano | Despesa corrente privada em saúde | ||||
| Private current expenditure on health | |||||
| Valor | Taxa variação nominal | % do PIB | % da despesa corrente | Per capita | |
| Year | Value | Change rate of value | % of GDP | % of Current expenditure | |
| 106€ | % | % | % | € | |
| 2023Po | 9 685,9 | 6,7 | 3,6 | 36,1 | 915,65 |
| 2024Pe | 10 318,6 | 6,5 | 3,6 | 35,3 | 965,94 |
Fonte: INE, Conta Satélite da Saúde 2024. Legenda: Dados provisórios (Po); Dados preliminares (Pe).
3. O equilíbrio não tem um sinal + ou – escrito na pedra
Como nada é constante, temos assim fatores que podem economizar recursos sem prejudicar o serviço (melhor gestão, melhor controlo, tecnologias e procedimento inovadores) mas temos outros a “puxar” no sentido contrário e inelutáveis (o envelhecimento, o próprio aumento da população).
No fim, para a mesma qualidade e disponibilidade de serviço, o resultado ideal tanto pode ser de gastar mais, menos ou o mesmo. Dependerá da correlação de forças entre os ganhos de produtividade e as maiores necessidades de produção.
Se alguém disse que gastar melhor terá de ser sinónimo de gastar menos, sem provar que essa correlação de forças é atingível então provavelmente estará a pressupor que algo mais fundamental mudará:
- Ou a qualidade de serviço deixará ser ser a mesma aceitando-se uma degradação;
- Ou a disponibilidade para prestar serviços ficará cada vez mais aquém do aumento da procura (acabando por degradar a qualidade do serviço);
- Ou contará com o desvio da procura para outros prestadores (e um reforço da despesa das família no privado) desvio esse patrocinado desde logo pelo “mero” anúncio de que gastar melhor implicará gastar menos (tornando inverosímil que a qualidade e disponibilidade se manterá).
4. Aumento da população residente a reforçar outra procura
Junte-se-lhe a isto um aumento líquido muito expressivo da população residente nos últimos anos que, apesar de contribuir para uma diluição do envelhecimento (em média) e para um crescimento do produto da economia nacional e da própria receita que ajuda a financiar o serviço nacional de saúde (e o sistema nacional de saúde), não reduz o número crescente de pessoas cada vez mais velhas a necessitar de serviços.
E, claro, é uma população que soma outro tipo de procura sobre a Saúde associada às necessidades da população em idade ativa e ainda em idade de assumir a parentalidade, por exemplo.
Com mais este fator, torna-se ainda mais absurdo olhar para a Saúde apenas com base em rácios e métricas de volume de gastos, desprezando os indicadores que dão a medida do crescimento do “mercado da saúde”.
5. A despesa do passado num país mais jovem com medida de má fé
É também igualmente absurdo fixar a meta do peso do PIB do investimento em Saúde usando por referência períodos em que a população era bem mais jovem.
Numa sociedade em forte envelhecimento é apenas natural que haja um maior peso da despesa em saúde, será muito estranho se ele for estável, indiciando – a menos que esteja em curso uma revolução tecnológica – muito provavelmente uma degradação estrutural do serviço.
Ter uma fatura com mais zeros quando temos uma população com mais pessoas e mais velhos, nunca pode ser encarado, por si, sem mais informação, como um falhanço. Não é assim que é encarado lá fora, onde outros também têm uma população a envelhecer, cuidam de gerir bem e de servir de forma universal e registam lentos mas percetíveis aumentos reais do peso da Saúde no conjunto da despesa pública.
Não esquecendo que Portugal é dos países mais envelhecidos da União Europeia e que tem acumulado, ainda assim, muito mais anos de investimento inferior em percentagem do PIB ao da média da União (em Saúde) do que anos em que supera essa média, pelo menos desde a crise financeira e de dívida soberana.

6. Quem quer mesmo gerir bem?
Queremos melhorar a qualidade, a disponibilidade e a satisfação com o serviço, melhorar os indicadores de produtividade, introduzindo novas metodologias de gestão e tecnologias inovadores, obtendo mais e melhor serviço por cada euro aplicado de modo a levar o SNS para um nível superior? Então a solução, não sendo simples, é única: gerir melhor, no sentido mais amplo e nobre da palavra.
Mas, se, na realidade, não acreditamos que o SNS seja melhorável por uma aposta em melhor gestão e queremos gastar menos em Saúde pública e de acesso universal, então que se assuma com honestidade e total clareza que o objetivo é gastar um valor progressivamente inferior ao atual, ajustando a quantidade e qualidade do serviço a esse valor e, claro, as expectativas sobre o que esperar do SNS. É uma opção legítima que ajudará a sustentar os cortes do IRC, do IRS, de outros impostos e isenções fiscais, por exemplo.
O que não é legítimo, nem dará saúde à democracia, será apregoar que se defende a melhoria da capacidade universalista, tecnologicamente avançada e inclusiva do SNS quando, objetivamente, o foco é abrir espaço para garantir que as reduções de receita fiscais já feitas sejam sustentáveis, aceitando que a definição de “boa gestão” implica menores gastos financeiros do que os atuais, em Saúde, sem valorizar o impacto na produção ou incorporar a pressão real e natural do atual enquadramento populacional e demográfico e até a realidade dos nossos parceiros europeus. A verdade é que com este foco, a degradação da qualidade e capacidade do SNS fazem parte estrutural das políticas.
Haja clareza e honestidade política.
Em democracia, cada um saberá o que preferirá, sem sonsices pelo meio.
Artigo de opinião
Rui MCB
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