O que distingue a discriminação presente num PIN de um tribunal especial para grandes investidores?

Tanto no caso dos PIN + (Projetos de Potencial Interesse Nacional +) como numa proposta de criação de um tribunal especial para grandes investimentos (visando em particular grandes investimentos estrangeiros) há uma constante evidente: privilegiar um grupo específico. E quando se privilegia um grupo, num mercado concorrencial, está-se inevitavelmente a introduzir uma desvantagem para quem não se qualifica entre os que se quer privilegiar.

Estas desvantagens, provavelmente por serem difíceis de medir, quando confrontadas com a vantagem “redonda” de um projeto de investimento de grandes números têm vindo a ser desprezadas com cada vez maior frequência no desenho de políticas do Estado, políticas que vêm fazendo escola, quer entre partidos supostamente mais liberais, quer entre partido supostamente mais estatistas.

Ainda assim, há alguns aspetos diferenciadores entre termos um governo que desenha  arbitrariamente um novo regime para servir um grande investimento dificilmente repetível (veja-se a reconversão das refinarias da GALP) e um governo que pretende instituir no próprio sistema judicial, dos procedimentos aos recursos afetos, um tratamento diferenciado.

No primeiro caso, produzir à medida um PIN + por mais arbitrário que seja gerará inevitavelmente um evento com projeção mediática e o seu inevitável escrutínio político. Ou seja, na prática, estaremos perante algo que será mais próximo de um episódio de política industrial do Estado (em parceria com um privado) . O julgamento será claramente político, a situação espera-se, repito, que seja excecional. Todas as reservas feitas nos primeiros parágrafos se aplicam, mas o evento é ad hoc. Uma eventual exceção dentro da regra de não discriminação de tratamento entre agente económicos e cidadãos. Os riscos de favorecimento ilícito e corrupção, pelo alto perfil mediático, deveria estar muito limitados e o impacto líquido singular (no duplo sentido) na economia poderia assumir-se como claramente positivo.

No caso de instituir ou embutir no sistema de justiça um tribunal especial, com recursos diferenciados e regras processuais também diferenciadas ao qual só pode aceder quem tem um volume de investimento no país acima de um determinado montante, visando em particular favorecer capital estrangeiros, estamos a levar a discriminação positiva para um outro nível e magnitude.

Note-se que o sistema judicial vigente já se organiza por “gravidade” ou relevância monetária das matérias em disputa com várias instâncias judiciais, a começar nos julgados de paz e tendo em paralelo e em complemento ao sistema clássico os tribunais arbitrais. Formalizar na organização judicial tribunais que se espera, por operarem com aquilo que estará a faltar aos restantes, fiquem isolados dos problemas da justiça, implica entrarmos num campeonato diferente de discriminação e de institucionalização da dualidade de tratamento entre cidadãos e organizações.

Esta desistência de operar sobre o todo, que terá começado com muito boas intenções e até em resposta a alguma práticas de outros Estados, por exemplo lidando com exceções imperativas como os PIN + (e, em menor grau com os próprios PIN), tem vindo a fazer escola com a replicação de regimes de exceção sempre numa lógica muito próxima de “os fins justificam os meios”. Recentemente tivemos a discriminação positiva dos “vistos dourados” através da qual se vendem vistos de residência a troco de investimento de meio milhão de euros, agora temos, na sequência da escalada, vinda do principal partido da oposição, a proposta da criação de uma estrutura judicial diferenciada, para beneficiar quem investir muito de uma vez no país. Esta proposta que será, de momento, o pináculo deste caminho,  “condena”, sublinhe-se, entre outros, as sempre elogiadas pequenas e médias empresas (e respetivos investidores) a subsistirem no sistema judicial que explicitamente se reconhece como deficiente e impeditivo. Um sistema especial que se espera, para pegar nas palavras recentes de Carlos Zorrinho (que coordena a elaboração do programa eleitoral do PS), venha a contagiar o remanescente sistema judicial.

Talvez fosse a altura de repensar toda esta multiplicação de regimes e de cedências algo desesperadas dos sucessivos governos: afinal, a “alma” de um Estado de Direito, de uma democracia, de uma economia social de mercado e de uma comunidade-nação não são “ativos” que resistam a todo o tipo de atropelos e descaracterizações. A mensagem mais forte que por aqui se identifica é a da desistência de reformar o funcionamento do Estado e de renovar o contrato social que se estabelece no nosso país.

Rui Manuel Cerdeira Branco

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