I.
Lendo com atenção o comunicado do INE é isso que se depreende: a substituição das SCUTS por portagens tramam o défice. Quando em 2010 o governo decidiu passar directamente para os utentes das auto-estradas que estavam em regime de SCUTS o pagamento da utilização fez com que o critério de contabilização do investimento feito nas auto-estradas tivesse de ser assumido pelas Estradas de Portugal (empresa do Estado e que, como tal, entra no perímetro de consolidação orçamental), levando o valor ao défice de 2010 e à dívida pública. Ou seja, para resolver um problema de tesouraria (que era mais do que esperado pois adivinhava-se desde que se haviam firmado as Parcerias Publico Privadas) o Governo foi forçado a imputar valores adicionais ao défice. Em termos objectivos, nada de facto mudou, respeitou-se a convenção de contas nacionais aceite na União Europeia que tem destas ironias.
Se calhar faz algum sentido questionar que regras contabilísticas são estas que parecem tão sensíveis a alterações que materialmente não alteram as responsabilidades do Estado. O encargo é brutal e já existia, não passou a existir agora, mas até parece… Em tese, se por hipótese um próximo governo decidisse voltar a instalar SCUTS lá ia o défice descer, sem que com isso deixássemos de ter de pagar os compromissos assumidos.
II.
Então e que dizer da revisão do INE/Eurostat feita a uma Sexta-Feira Santa, depois de ter apresentado um défice significativamente diferente há 3 semanas? Ver o artigo “OFICIAL: INE volta a rever em alta o défice de 2010: 9,1% (act. II)“. Não foi de facto nada de escondido que se revelou, aliás no comunicado diz-se que há 3 semanas já se sabia que havia estas questões só que o INE e o Eurostat tinham decidido só as apreciar e incorporar eventuais alterações, em Outubro de 2011, momento habitual de revisão. Porquê? Porque eram questões muito complexas. Note-se que não consta que tivessem colocado qualquer reserva explícita ao défice aprovado a 31 de Março, nomeadamente assumindo publicamente as dúvidas que agora revelam já ter desde então.
O que mudou? Chegou a troika e alguém deu com a língua nos dentes forçando o INE e o Eurostat a resolverem num piscar de olhos a complexidade das dúvidas. Seja qual for a perspectiva com que se olhe para isto há três vitimas claras de todo este processo:
A credibilidade do INE, a credibilidade do Eurostat e a utilidade das regras contabilísticas em vigor na União Europeia, no sentido de serem instrumentos adequados para a fiel representação e conhecimento das contas dos Estados.
Haverá depois vítimas colaterais (ainda que nada ingénuas) neste tempo eleitoral. Esperemos que, de caminho, a credibilidade do país não seja ela também maltratada, numa questão em que, objectivamente, se aproveitaram as faculdades legais de um conjunto bizarro de regras de contabilização comunitárias.
III.
Em que é que ficamos? Como estávamos, com um sério problema de finanças públicas e privadas por resolver, mas também com problemas de responsabilização ao nível das instituições europeias. Quem é que anda a avaliar politicamente aquilo que se faz na Europa, nomeadamente os arranjinhos contabilísticos a que o sistema de contas parece ser tão permeável? Será que não estamos também a pagar pela falta de concertação estratégica interna quanto à defesa dos nossos interesses no exterior? Será que as sucessivas afinações no escrutínio do défice português se está a aplicar de igual forma a TODOS os países da União? É legítimo que assim não seja? Em que outros países ficaram questões por avaliar para Outubro, em virtude da sua complexidade?
O facto da União Europeia ter como única fonte directa de representatividade democrática de primeira ordem o Parlamento Europeu parece manifestamente insuficiente, pelo menos com o ainda escasso poder que este órgão tem. As regras do jogo estão demasiado viciadas e em claro e crescente desfavor dos menos poderosos e dos conjunturalmente mais vulneráveis.
Quo Vadis Europa?