Qual o principal contributo do livro-estrela de Thomas Piketty?

Qual o principal contributo de “O Capital no Século XXI”, o sucesso de vendas do momento do economista francês Thomas Piketty para a economia e melhor compreensão do sistema capitalista e organização do mundo económico em que vivemos? O filosofo João Constâncio tenta hoje responder a esta pergunta num recensão apresentada no jornal Público (ver “Thomas Piketty e O Capital no Século XXI“) e da qual destacamos o seguinte excerto:

“(…) Ora, a novidade do livro está precisamente na sua tese principal sobre esses mecanismos. Podemos dividi-la em dois pontos fundamentais e formulá-la deste modo:

(1) A história económica dos últimos 220 anos em mais de 20 países mostra que o capitalismo é um sistema de produção que, excepto em circunstâncias muito particulares, gera enormes desigualdades na repartição da riqueza — e isso fundamentalmente porque, nesse sistema, a “taxa de rendimento do capital” (r) tende a ser, em média e no longo prazo, maior do que a “taxa de crescimento da produção” (g), ou seja, porque, tendencialmente (ou segundo um padrão que se verifica no longo prazo), r > g;

(2) o que isso significa é que o capitalismo foi sempre — e continua a ser hoje, na época da sua maior globalização e financiarização — um capitalismo patrimonial, isto é, um sistema de produção e distribuição de rendimento que, a partir de uma maior ou menor desigualdade inicial, gera sempre, de forma endógena e progressiva, acumulação e concentração de património (ou capital) nas mãos de uma percentagem muito minoritária de famílias. No longo prazo e na medida em que r > g (ou seja, na medida em que “as pessoas com riqueza herdada só precisam de poupar uma porção do seu rendimento sobre o capital para que este capital cresça mais depressa do que a economia como um todo”), uma sociedade capitalista acaba sempre por ser uma “sociedade de herdeiros”.

O ponto (1) é novo na teoria económica porque é nova a ideia de que a história do capitalismo revela o padrão r > g e, portanto, é nova a tese de que este padrão é, na verdade, o principal mecanismo que explica por que razão o capitalismo gera desigualdades de forma endógena. Esta ideia de um “mecanismo” — como mecanismo endógeno e historicamente comprovado — tem uma força imensa. O tempo dirá se é ou não descabido fazer a seguinte analogia: tal como a força e a novidade do pensamento de Darwin consistiu, não na descoberta da evolução das espécies, mas antes na descoberta de um mecanismo (a “selecção natural”) que explicava a evolução das espécies e a tornava plausível, assim também a força e a novidade do pensamento de Piketty consiste, não certamente na descoberta da desigualdade, mas antes na descoberta do mecanismo que a explica e que a mostra ser intrínseca ao capitalismo.

O ponto (2) é novo na teoria económica porque, nas últimas décadas, os estudos sobre as desigualdades pressupuseram, no fundo, uma sociedade de empreendedores e não de herdeiros. Por isso, tais estudos trataram essencialmente das desigualdades no rendimento do trabalho (por exemplo, da diferença entre os salários do 1% mais bem pago e os salários dos restantes 99%). Não contaram com o r = “taxa de rendimento do capital”, pois não calcularam o valor de ? = a ratio entre o capital acumulado e a produção anual de um país (PIB). Segundo os números de Piketty e do vasto número de economistas que com ele colaboram, num país do primeiro mundo o capital acumulado (i.e. o património ou riqueza) tende a ser cerca de 600% do PIB, ou seja, um tal país precisa de 6 anos para produzir um rendimento equivalente à riqueza que já foi acumulada e que, portanto, já existe como património ou capital (basicamente privado) desse país. O principal factor do progressivo aumento das desigualdades num país deste tipo é a taxa de retorno desse capital acumulado, ou seja, o facto de essa taxa de retorno permitir níveis de poupança (s) que o rendimento do trabalho não pode proporcionar. Portanto, o capitalismo é, de facto, o sistema do “empreendedor” — mas todo o empreendedor, se tem sucesso, acaba por ter rendimentos sobre o seu capital (como todo o “rentista” do século XVIII ou XIX) e, dessa forma, acumular um património que tenderá a ser legado e a crescer na geração seguinte. O mecanismo que explica a desigualdade e que a mostra ser intrínseca ao capitalismo é um mecanismo de acumulação patrimonial, portanto um mecanismo pelo qual, como diz Piketty, “o passado tende a devorar o futuro”: não só o rendimento sobre o capital tende a crescer em percentagem em relação à totalidade do rendimento nacional, como as fortunas que eram maiores no passado tendem a tornar-se ainda maiores no futuro.(…)”

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