E se nem toda a formação do mundo o salvar do desemprego? Sob o pretexto da primeira revolução industrial, há mais de 200 anos que a humanidade lida de forma mais consciente com a dialética entre homem e máquina no seio da atividade económica. Uma das primeiras reações – o movimento ludita – há cerca de duzentos anos, perante a substituição do trabalho braçal por máquinas que automatizavam a produção, foi violenta e propunha (e tentava) a destruição física das máquinas que eram vistas como concorrentes que diminuíam os postos de trabalho disponíveis mas também como escravizadoras pelo que exigiam aos que permaneciam a operá-las ou a complementa-las, habitualmente com horários de trabalho extenuantes e mal remunerados.
O operário passava assim a ser o elo mais fraco de uma sociedade então dominada por uma grande transformação social, com grandes volumes de população a abandonar os campos rumo às cidades. O movimento ludita foi ferozmente combatido e terá desaparecido no final do século XIX. E o certo é que, apesar dos inegáveis custos de transição que terão deixado partes significativas da população sob carências ou com a necessidade de efetuarem um forte esforço de adaptação a uma nova realidade, os argumentos dos luditas não se provaram verídicos com o tempo, dado que a inovação, ela própria, tende a gerar novos postos de trabalho em novas atividades.
Quase sempre que surgiram novas inovações epocais, novas transformações de monta no processo produtivo, esta dúvida sobre o que acontecerá a quem fica para trás em termos utilidade no processo produtivo e a angústia de saber se as inovações acabarão por gerar, ou não, postos de trabalho suficientes para substituir os que se perdem, ressurge. E estas angústias sempre têm tido a mesma resposta. Sendo certo que é necessários cuidar de quem não é reconvertível, tem sido uma questão de tempo até se comprovar que mais qualificações geralmente conduzem à ocupação dos novos postos de trabalho criados pela evolução científica. O pleno emprego nunca foi decisivamente ameaçado pela ciência e, como tal, o trabalho sempre tem sido uma forma adequada de redistribuir a riqueza e em torno do qual organizar boa parte da nossa existência.
Mas poderá esse movimento de reequilíbrio estar agora a ser colocado em causa? Poderá – desta vez – a inovação substituir e destruir emprego a um ritmo nunca visto no passado e não apresentar, de facto, alternativas óbvias face a uma autosuficiência e inteligência artificial crescente dos artefactos que inventamos e que nos substituem, do ponto de vista produtivo, de uma forma inimaginável há poucos anos?
A falange de cientistas sociais, intelectuais das mais variadas áreas e organizações que têm dedicado cada vez mais atenção a este tema não para de aumentar. Cientistas como Stephen Hawking – sempre atualizado quanto às mais recentes tendências e descobertas científicas em termos multidisciplinares – ou economistas como Andy Haldane (economista chefe do Banco de Inglaterra) têm em comum terem dedicado algum do seu tempo a estudar e/ou divulgar, sob diferentes perspetivas o que pensam será o futuro muito próximo no mercado de trabalho e as suas consequências nas várias facetas da nossa sociedade. Hawking defende que em menos de 10 anos a inteligência artificial (IA) terá autonomia total sobre o ser humano, em virtude da progressão exponencial a que decorrem as descobertas científicas na área, estando a IA num ponto em que o próprio artefacto é já decisivo para acelerar a evolução sobre ao seu próprio desenvolvimento (colocando potenciais risco sobre a nossa própria evolução caso se perca o controlo do “máquina”). Hawking defende – como muitos outros – que o ritmo de substituição do ser humano em áreas produtivas até aqui vistas como intocáveis em termos de automatização pela sua complexidade intelectual (empregos nos serviços, por exemplo) ou mesmo destreza motora (condução de veículos em ambientes complexos como a rodovia) será extremamente acelerada nos próximos anos, estando já em curso.
Andy Haldane e o Banco de Inglaterra abordaram muito recentemente este mesmo tema procurando identificar os impactos económicos, antecipando a destruição líquida de postos de trabalho, o impacto dessa perda de emprego na própria procura e, de um modo geral, nas grandes variáveis macroeconómicas relevantes para o trabalho de um banco central, como seja a inflação ou o crescimento económico. Os valores estimados pelo Banco de Inglaterra são impressionantes.
Segundo peça do jornal The Guardian “Robots threaten 15m UK jobs, says Bank of England’s chief economist“, a que chegámos através deste artigo do jornalista Paulo Querido, o Banco de Inglaterra estima que haja neste momento 15 milhões de empregos no Reino Unido sob ameaça de serem anulados e substituídos por alternativas não humanas. E, de facto, o nível de desenvolvimento de unidades de inteligência artificial está já a substituir partes significativas do processo de contacto com clientes e tratamento de reclamações, por exemplo, onde as tarefas são atribuídas com elevada precisão aos responsáveis numa empresa, após os email com queixas e reclamações terem sido lidos, interpretados e distribuídos sem qualquer intervenção humana prévia. Ao nível dos transportes, por outro lado, a automação da condução de máquinas e veículos está a desenvolver-se a um ritmo alucinante sendo possível que os primeiros veículos não conduzidos comecem a ser produzidos em massa nos próximos anos, abrindo assim potencial para substituir milhões de postos de trabalho no transporte rodoviário de pessoas e bens. Taxistas, camionistas, condutores de transportes coletivos em geral, podem também estar em risco de vir a ser substituídos num horizonte temporal muito curto.
O Banco de Inglaterra frisa que a automação crescente dos locais de trabalho pode estar já a ajudar a deprimir o crescimento dos salários contribuindo para explicar porque é que apesar de todos os esforços, a inflação não atinge o limiar de 2% considerado como alvo desejável pelo governo britânico. Se esta evolução estiver a impedir que o fator trabalho recupere rendimentos de modo a regressar à percentagem de distribuição de riqueza que recebia antes da crise, as metas de inflação para os próximos anos voltarão a não ser alcançada defende o economista chefe do Banco de Inglaterra.
Mas, como dissemos no início este tipo de processo não é novo e, com alguma desfasamento entre o choque e o surgimento de ocupações alternativas, sempre se tem resolvido ao longo destes 200 anos. A peça determinante para atingir um novo equilíbrio entre homem e máquina num ponto superior de capacidade de produção de riqueza tem sido aumentar o nível de formação dos trabalhadores. Não poderemos mais uma vez estar a passar por este exato processo? Talvez, mas há indicadores perturbadores desta tese, desta vez.
A este propósito, vale a pena reter as palavras de Haldane que traduzimos da peça do The Guardin (discurso integral disponível no Banco de Inglaterra):
“O economista chefe do banco de Inglaterra disse que os avanços desde o século XVIII sempre tiveram o efeito de aumentar o fosso entre os qualificados e os não qualificados, mas existem sinais de que este processo está a acelerar. Haldane acrescentou que à medida que a tecnologia melhorou, existe uma maior probabilidade de que “o espaço remanescente para competência exclusivamente humana possa diminuir no futuro”.
“Se estas visões se vierem a concretizar, por mais futuristicas que possam parecer, os padrões do mercado de trabalho que conhecemos durante os últimos três séculos pode vir a mudar a uma velocidade alucinante “warp speed“. Se a opção por aumentar as competências [dos trabalhadores como resposta] não estiver disponível, tal aumentará o risco de um desemprego ou subemprego. O prémio salarial pago àqueles ocupando posições altamente qualificadas explodirá, aumentando ainda mais o diferencial face aos restantes.” E a parte do bolo destinada ao trabalho diminuirá ainda mais dramaticamente que no passado. “Nesta perspetiva, a árvore ter-se-á tornado tão coa, que deixará de se conseguir suportar a si própria”.
Perante isto, a resposta mais adequada, não é ainda evidente, mas certamente não passará por defender a destruição das máquinas num movimento ludista serôdio. Terá provavelmente de implicar uma autêntica revolução na forma como nos organizamos enquanto sociedade. Seremos capazes de gerar mais produção, provavelmente com menor custo para o planeta, mas o trabalho ou o emprego como o conhecemos hoje deixará de ser a peça fulcral de definição e identificação de uma percentagem cada vez maior da população. E deixará de ser a forma de prover o nosso sustento ou definir o que temos, pelo menos de forma absoluta.
E seremos capazes de nos reinventar e de gerir com sucesso o alter ego que estamos a ser capazes de gerar e que nos superará em inteligência (ou pelo menos segundo alguns conceitos de inteligência)?
Conseguiremos enfrentar os desequilíbrios provocados por um sistema de organização social que antes de ser substituído ameaça gerar tensões, conflitos e paradoxos que podem levar à sua própria implosão?
Parte do caminho faz-se começando a ganhar rapidamente consciência de quão rápida está a ser a mudança e quão rápida terá de ser a nossa reação. E nesse aspeto, o Banco de Inglaterra está a fazer o seu papel.
O trágico fenómeno do desemprego mundial é uma consequência de os detentores do poder politico se demitirem do exercício fundamental da sua finalidade, que é o de assegurarem, no âmbito dos seus países, uma constante situação de pleno emprego, bem como o máximo aproveitamento dos recursos naturais existentes, como agentes económicos necessários e complementares das limitações da iniciativa privada possível sempre limitada.