Tenha ou não formação em economia esta discussão interessa-lhe. Desafiamo-lo a investir alguns minutos neste artigo e a partilhar connosco eventuais perplexidades.
É do senso comum que um banco capta depósitos, paga um juro para depois emprestar esse dinheiro a um juro superior, por exemplo, a alguém que queira montar ou alargar uma empresa ou mudar de automóvel.
É do conhecimento dos economistas que €100 de depósitos podem gerar várias vezes esse valor em empréstimos, afinal, um empréstimo acaba muitas vezes por levar a que parte do dinheiro emprestado volte a ser depositado, ainda que na conta de outrem, dinheiro esse que pode ser assim multiplicado através de outros empréstimos. Desta forma, os €100 iniciais de dinheiro – que até podiam ser notas emitidas pelo banco central – acabam por dar origem a muito mais dinheiro em depósitos bancários, inscritos virtualmente em zeros e uns nos computadores das instituições bancárias. Aos economistas é também ensinado que os bancos têm de constituir uma reserva fixada pelo regulador correspondente a uma fração dos depósitos e essa reserva não pode ser emprestada, tem de ficar cativa junto do banco central havendo ainda uma porção do dinheiro que tem de estar disponível no banco para servir os pedidos de levantamentos em dinheiro vivo (ou numerário). E sabe-se também que os bancos têm de cumprir com critérios de capital com impacto indireto na sua capacidade de gerar dinheiro por via de empréstimos.
Mas agora algo mudou, ou melhor, a perceção do que se passa, de facto, corre o risco de mudar, depois de o Banco Central da Inglaterra ter reconhecido que esta história está mal contada em vários aspetos no artigo “Money creation in the modern economy” publicado há poucos dias.
O que é significativo no artigo publicado pelo Banco de Inglaterra é que a realidade vai para além desta descrição já de si surpreendente para muitos: afinal, os bancos podem criar dinheiro do ar!
Na realidade, segundo este artigo, a poupança captada pelo banco não é determinante para condicionar a capacidade que o banco tem para emprestar dinheiro. A relação é aliás, inversa: são os empres´timso que determinam os depósitos.
Os bancos podem criar literalmente moeda do ar com uma simples operação num computador. A única restrição habitual é haver uma proposta de empréstimo que o banco considera que tem pernas para andar, e, claro, que o banco esteja disposto a preferí-la, a por exemplo, deixar ficar o dinheiro parado nos circuitos do computador, o resto é… magia.
Vejamos um exemplo:
Imagine que quer comprar uma casa precisa de pedir dinheiro ao banco. Imagine que o banco aceita emprestar-lhe €100.000.
O que faz o banco, uma vez tomada a decisão? Vai ao seu sistema informático, abre a conta do cliente que quer o crédito e escreve: deves-me €100.000. No momento seguinte o banco credita-lhe a conta com esses €100.000 para poder pagar ao vendedor, criando assim um depósito. O impacto em termos de equilíbrio no balanço do banco destas duas operações é nulo, uma compensa a outra. Ou seja, com estas operações o Banco inventou €100.000 de dívida (a do cliente) e inventou €100.000 de depósitos (o dinheiro colocado na sua conta para este pagar a compra da casa), promovendo também o nascimento de taxas de juro e a obrigação de alguém as pagar. E pronto, temos mais 100.000 unidades monetárias na economia sem que o Banco Central tenha feito absolutamente nada. Onde é que foram precisos os depósitos de muitas vidas para que o banco tivesse dinheiro para emprestar?
Agora imagine que o vendedor da casa tinha conta nesse mesmo banco. Quando recebe o dinheiro que estava na conta do comprador e o deposita na sua conta o que acontece do ponto de vista do banco? Nada de especial. Tem o comprador que lhe deve €100.000 e tem o vendedor do qual tem €100.000 à guarda. Tudo perfeito. O dinheiro nasceu e já está a circular, sendo que, naturalmente, há juros envolvidos, com vantagem na margem para sustentar a atividade do banco. De resto, nada do que existia antes da decisão de crédito foi determinante e nada do que se passou será determinante para a tomada de decisão sobre o próximo pedido de crédito que recebeu. Ou quase…
Então e se o vendedor depositar o dinheiro noutro banco ou simplesmente guardar o dinheiro debaixo do colchão? Nesse caso, quando, no final do dia, o banco fizer as contas a todos os depósitos que recebeu e todos os depósitos que “perdeu” para outro bancos ou para o colchão, analisa se tem ou não falta de dinheiro para equilibrar as suas contas. Se tiver, nesse caso e só no montante em falta, terá de pedir dinheiro emprestado, como o fez o comprador da casa. Neste caso, o mais provável é pedir dinheiro emprestado a outros bancos, por exemplo, ao banco que recebeu o depósito do vendedor da casa, caso este tenha decidido depositar lá o seu dinheiro.
E se nenhum outro banco lhe emprestar dinheiro, por opção (por exemplo, por não confiar no banco que pede o empréstimo)?
Nesse caso, a vida do banqueiro complica-se mas apenas quanto baste, é que há um banco que tem sempre dinheiro e está disposto a emprestá-lo a troco de um juro: o banco central cuja garantia de última instância se suporta na delegação de poder do Estado vulgo contribuintes. O sistema nunca fica desequilibrado e, como se vê, o banco central terá, através da taxa de juro que cobra, uma palavra a dizer na facilidade com que se cria dinheiro, mas como se vê também, esse poder é aquilo que poderíamos chamar de segunda ordem, pouco relevante se a banca comercial cumprir com o seu papel no mercado interbancário, ou seja, se emprestarem dinheiro uns aos outros de forma consistente.
A vida de banqueiro, nesta perspetiva é fácil. Tem o poder de decidir quanta moeda cria e quando a cria e quanta destrói (limitando o crédito) e quando a destrói. Em condições normais, o Banco Central tem muito pouco poder para condicionar estas decisões e menos ainda para determinar a quem os bancos emprestam dinheiro. Hoje, por exemplo, o Banco Central Europeu (BCE) queixa-se de os bancos receberem o dinheiro barato que o BCE lhes empresta mas pouco o aplicarem na economia real, a financiar novos empreendimentos, preferindo, ou ficar “sentado em cima do dinheiro” ou emprestá-lo a muito curto prazo, ou mesmo usá-lo para comprar ações próprias (até ao montante legal) contribuindo assim para valorizar as ações em bolsa e indiretamente passar parte do capital para os seus acionistas. O artigo do Banco de Inglaterra também aborda algumas destas questões desmitificando algumas certezas presentes em alguns manuais de economia e deixando, no final, a perceção de que o efeito, por exemplo, do Quantitative Easing (QE) estar longe de ser garantido ou de ser direto. Discutem-se assim alguns dos instrumentos de política monetária que se reconhecem como ao dispor dos bancos centrais (como o referido QE ou mesmo a gestão do Core Tier 1).
Sem dúvida que este reconhecimento institucional desta forma de encarar os fundamentos da atividade bancária por parte de um dos principais bancos centrais do mundo, dará fôlego a novas formas de compreender a economia e contribuirá para alterar a tomada de decisão de política económica em diversas áreas que têm muito a ver com a vida do cidadão comum.
Terminamos o nosso texto onde recorremos a algumas simplificaçao didáticasdeixando algumas citações do artigo de Michael McLeay, Amar Radia e Ryland Thomas do Banco de Inglaterra:
“In the modern economy, most money takes the form of bank deposits. But how those bank deposits are created is often misunderstood: the principal way is through commercial banks making loans. Whenever a bank makes a loan, it simultaneously creates a matching deposit in the borrower’s bank account, thereby creating new money.
The reality of how money is created today differs from the description found in some economics textbooks:
- Rather than banks receiving deposits when households save and then lending them out, bank lending creates deposits.
- In normal times, the central bank does not fix the amount of money in circulation, nor is central bank money ‘multiplied up’ into more loans and deposits.
Although commercial banks create money through lending, they cannot do so freely without limit. Banks are limited in how much they can lend if they are to remain profitable in a competitive banking system. Prudential regulation also acts as a constraint on banks’ activities in order to maintain the resilience of the financial system. And the households and companies who receive the money created by new lending may take actions that affect the stock of money — they could quickly ‘destroy’ money by using it to repay their existing debt, for instance.
Monetary policy acts as the ultimate limit on money creation. The Bank of England aims to make sure the amount of money creation in the economy is consistent with low and stable inflation. In normal times, the Bank of England implements monetary policy by setting the interest rate on central bank reserves. This then influences a range of interest rates in the economy, including those on bank loans.
In exceptional circumstances, when interest rates are at their effective lower bound, money creation and spending in the economy may still be too low to be consistent with the central bank’s monetary policy objectives. One possible response is to undertake a series of asset purchases, or ‘quantitative easing’ (QE). QE is intended to boost the amount of money in the economy directly by purchasing assets, mainly from non-bank financial companies.
QE initially increases the amount of bank deposits those companies hold (in place of the assets they sell). Those companies will then wish to rebalance their portfolios of assets by buying higher-yielding assets, raising the price of those assets and stimulating spending in the economy.
As a by-product of QE, new central bank reserves are created. But these are not an important part of the transmission mechanism. This article explains how, just as in normal times, these reserves cannot be multiplied into more loans and deposits and how these reserves do not represent ‘free money’ for banks.”“The amount of money created in the economy ultimately depends on the monetary policy of the central bank. In normal times, this is carried out by setting interest rates. The central bank can also affect the amount of money directly through purchasing assets or ‘quantitative easing’.”
Mas isto aprende qualquer aluno de gestão/economia na cadeira de “Moeda e Instituições Financeiras” que era assim que se chamava no meu curso.
A primeira parte do artigo sim, explica-se o que vem no manual. Mas note a diferença no arranque do processo de criação de moeda que o Banco de Inglaterra reconhece: não é preciso depósitos para criar moeda por via de empréstimos. Zero depósitos de início podem originar um volume brutal de moeda (crédito e depósitos que nasceu concomitantemente). Era mesmo isto que dizem nas faculdades? Na minha falava-se na necessidade de captar de depósitos para depois, descontando-se uma reserva obrigatória (que na prática não existe) se ir criando moeda concedendo uam fração do depósitos como crédito. Aqui o que se diz é que a única cois que é determinante é existir uma proposta de negócio que prove ser capaz de pagar o capital pedido e o juro. O passo prévio de acumular capital para depois emprestar não existe. Quando muito aparece de formam itigada mais adiante e apena para suprir o líquido entre os depósitos captados/criados pelo crédito e aqueles que o banco possa perder para a concorrência.
Em Inglaterra este já é um debate que passou para a “praça pública”: https://www.positivemoney.org/
Aliás, a iniciativa que referi produziu um “curso” “for dummies” muito ilustrativo: http://www.positivemoney.org/how-money-works/banking-101-video-course/
Não foi agora que mudou, foi em 1944. Os acordos de Bretton Woods !
O dinheiro nasce do nada 🙁
@Mapari,
Sim, chamam-se processos de criação de moeda, este é só um deles.
@ Nuno.
Exacto,
Não creio que venha trazer muito de substancial. Há muito que é conhecida a fórmula dos monetaristas i.e. Delta PIB = Stock de capital x Velocidade de circulação da moeda. A velocidade é função da actividade económica, i.e., a soma de todos os agentes económicos incluindo o dito comprador da habitação e o vendedor. O que regula esta equação é a oferta monetária, logo o stock de capital disponível, permitido pelo regulador (o Banco Central) através dos designados agregados monetários (M3 , M2 e M1), os quais são condicionados pela taxa de juro. Por outras palavras os bancos estão sempre dispostos a emprestar desde que tenham acesso a fundos (depósitos ou empréstimos e outros bancos ou do central) e desde que os riscos não ultrapassem um certo limite.
SF
Não me leve a mal Fernando, mas creio que não percebeu. A taxa de juro não é irrelevante para condicionar a criação de moeda, aí estamos de acordo, ainda que tenha um poder limitado. Mas quanto ao “acesso a fundos” ele também não tem o peso que lhe atribui. O acesso é relevante na margem, como variável de ajustamento de desequilibrios, que podem nem existir. Se um banco resolver emprestar-lhe mil biliões de euros e você decidir depositar nesse banco mil biliões menos, vá, 100.000€ para comparar um bólide e admitindo que desses 100.000€, 80.000€ não se convertem em depósitos nesse mesmo banco e os 20.000€ acabam por regressar ao tal banco (porque é lá que o vendedor do bólide tem conta), no final do dia o seu banco criou mil biliões em moeda mas só tem de levantar 80.000€ para equilibrar as contas.