E se o Estado proibisse a banca comercial de criar moeda?
Na passada semana o parlamento britânico promoveu um debate sobre um tema que não abordava há 170 anos: a criação da moeda e a delegação desse poder.
Deputados conservadores, liberais e trabalhistas com elevado conhecimento sobre o funcionamento do sistema financeiro e com propostas concretas sobre mecanismos de melhoria do atual sistema foram sendo interpelados pelos seus pares e preparando soluções, não para implementação imediata (não há condições políticas) mas para consolidação, criando-se uma solução de reserva a implementar na eventualidade de uma maior evidência da falência do sistema atual – ou por outras palavras, após o rebentar da próxima crise financeira que muitos acreditam poder se pior do que a mais recente.
Mas qual é o problema com o atual mecanismo de criação de moeda?
O maior problema é que no atual sistema o volume de moeda encolhe ou expande muito mais de acordo com vontade das administrações da banca comercial e essas vontades podem responder a interesses que são os opostos dos que trariam maior vantagem para a sociedade e saúde económica. Tipicamente as administrações dos bancos comerciais estão mais predispostas a criar (mais) moeda quando a economia cresce acabando por criar ou alimentar sucessivas bolhas (quanto mais o preço sobe mais ele vai subir porque mais pessoas vão querer uma parte dos lucros da subida futura – pense-se no preço dos imoveis ou das ações). Essas bolhas mais cedo ou mais tarde acabam por explodir e gerar crises que podem ser profundas e como reação a esse rebentamento, os bancos que andaram a emprestar dinheiro a quem queria investir nessas bolhas retraem-se e agravam o “afundamento” abrupto proveniente do rebentamento sobre reagindo e vedando crédito mesmo a quem queira investir em mercados com dinâmicas saudáveis, não assentes em especulação. Ou seja, durante a euforia os banqueiros alimentam o estado eufórico e durante a depressão agravam o estado depressivo. Tudo porque é o seu estado de espírito (para simplificar) que mais condiciona a criação de moeda. Esta prociclicidade da criação da moeda tem sido enfrentada apenas de forma parcial com alterações na definição das exigências e valorização de capital imposta pelos bancos centrais à banca comercial e por alguns mecanismo de criação de moeda que o banco central controla. Mas o problema fundamental mantêm-se: a decisão de quanto dinheiro criar e a quem emprestar continua basicamente nas mãos da banca comercial e o banco central só em algumas circunstâncias vê as suas políticas terem tração. Noutras, como agora, o fracasso parece ser o destino recorrente das medidas de política monetária.
Vários deputados britânicos diagnosticaram o fim a prazo do atual sistema de criação de moeda em que 97% de toda a moeda em circulação é criada unilateralmente pela banca comercial e apenas 3% pelos bancos centrais (dados relativos ao Reino Unido). Na prática, como já aqui dissemos (afirmado pelo próprio Banco central Inglês e em contradição com o que se ensina em muitos manuais de economia e é o senso comum de muitas cidadãos e discursos de muitos políticos) não é preciso depósitos para emprestar dinheiro. O dinheiro emprestado não é o dinheiro poupado. Pelo menos não num regime de paridade em que todo o dinheiro emprestado deve corresponder à poupança de alguém. O Estado que garante a solvência da esmagadora maioria dos depósitos a prazo e emite papel-moeda e moeda (via Banco Central), delegou implicitamente na banca comercial a possibilidade de criar tanto dinheiro ou tão pouco quanto este desejar pelo simples processo de inscrição contabilística de um novo empréstimo contra o correspondente depósito. Imaginemos um crédito à habitação: quando um cliente assina um contrato de crédito com um banco, o que acontece? O banco regista uma dívida na conta do cliente e ao mesmo tempo credita-lhe o valor emprestado como depósito numa conta. Esse valor simplesmente não existia antes da concessão de crédito e não veio da poupança de ninguém. Foi criado porque a administração do Banco considera oportuno (potencialmente lucrativo) fornecer dinheiro àquele cliente concreto por troca com um juro.
Esta facilidade de criação de moeda surge anexa ao poder de emprestar dinheiro a quem pode ter uma palavra a dizer na política comercial do banco (os seus acionistas e administradores) ou de financiar empréstimos para serem usados na compra de ações próprias (inflacionado a cotação na bolsa e gerando uma espiral de valorização fictícia), por exemplo.
O Banco Central controla apenas indiretamente o volume de moeda em circulação. Imaginando que no ato da compra de casa a crédito o vendedor que recebe o dinheiro tem conta no mesmo banco e lá deposita o dinheiro, o banco emissor de moeda/crédito não precisará de qualquer capital para fechar o dia com contas equilibradas. Se o depósito migrar para outro banco, o banco emissor/credor, no final do dia caso não tenha recebido depósitos de outros bancos que o compensem poderá ter de recorrer ao mercado de crédito interbancário ou ao banco central para ele próprio pedir um empréstimo para cumprir com os equilíbrios financeiros que tem no fim do dia e é aqui se e só se o Banco precisar de dinheiro – tipicamente um pequena fração de toda a moeda que criou – que pode haver um mecanismo de incentivo ou desincentivo à criação de moeda sobre a banca comercial. Este mecanismo de controlo faz-se geralmente sobre a forma de taxa de juro: quanto maior for a taxa de juro cobrada nos empréstimos entre os bancos menor a probabilidade de eles se sentirem motivados a conceder crédito, ou seja, a criar moeda. Por outro lado, se o Banco Central quiser estimular a banca comercial a criar dinheiro, poderá descer a taxa de juro que cobra pelos empréstimos, contudo, quer num cenário de querer desincentivar, quer de estimular a criação de moeda o poder do banco central por via da taxa de juro é limitado.
Hoje, por exemplo, o Banco Central Europeu quer que a banca crie moeda para emprestar dinheiro à economia real, a produtiva, geradora de postos de trabalho, só que já tem as taxas de juro com que remunera os depósitos que outros bancos façam junto do BCE em valores negativos (para ver se eles emprestam em vez de pouparem/estacionarem o dinheiro) e tem as taxas de juro que cobra a quem lhe peça dinheiro praticamente no zero e nem assim consegue o incentivo pretendido. O BCE anda a procurar formas não convencionais de injetar dinheiro na economia (nomeadamente para gerar inflação e estimular os investidores em aplicarem poupanças ou pedirem crédito em investimento da economia não-financeira), mas está a enfrentar imensas dificuldades. Porquê?
Porque na conjuntura atual a banca comercial está a destruir moeda a uma velocidade muito superior àquela que o Banco Central consegue injetar. É que famílias, empresas e a própria banca estão a tentar pagar os empréstimos que têm (destruído moeda) precisamente quando a economia já está a crescer pouco ou em recessão. Por um lado há o objetivo de reduzir a dívida que se crê insustentável, por outro sabe-se que sem mais crédito (em particular na Europa onde o peso da banca no financiamento económica é muito elevado) corremos o risco de entrar numa espiral de deflação que demoverá o investimento e poderá potenciar uma recessão eterna à moda do que se passou no Japão há alguns anos.
O que fazer?
Para romper com a sucessão de bolhas e rebentamentos potenciada pelo processo de criação de moeda, estão a surgir propostas que vão no sentido de impedirem os bancos comerciais de concederem empréstimos sem terem, de facto, capital depositado para o fazerem entregando ao soberano (que pode ser protagonizado pelo banco central ou por outra instituição que não ligada de forma demasiado íntima com o poder político mas que a ele responda) a decisão administrativa de definir qual o volume de moeda disponível para circulação em cada momento – estamos perante uma forma de Sovereign Monetary System, um resgate do poder de criação de moeda pelo Estado (que não pelo governo).
A ideia é o soberano procurar “secar” a moeda em circulação em período de expansão, controlando assim os empréstimos possíveis, sempre que haja ameaça de inflação e “inundar” de moeda o mercado em períodos de contração, colocando a gestão monetária funcionar contra o ciclo económico, amenizando potenciais bolhas e potenciais depressões e não potenciando-as como agora. Naturalmente o diabo desta proposta estará nos detalhes, mas admitindo que de facto surja nova crise que apanhe as principais economias sem margem de manobra nos instrumentos tradicionais ao dispor, não é impossível que tal revolução no sistema bancário possa ocorrer. Para já, no Reino Unido, a discussão está em curso.
1.«O maior problema é que no atual sistema o volume de moeda encolhe ou expande muito mais de acordo com vontade das administrações da banca comercial»
A única forma de contornar (e não apenas de influenciar, que isso já faz) isso é sendo o Estado/BC a decidir a quem se empresta! Isso cabe na cabeça de alguém? Há alguma alternativa?
2. « aqui dissemos (afirmado pelo próprio Banco central Inglês e em contradição com o que se ensina em muitos manuais de economia)»
Isto é irrelevante. Os manuais são necessariamente uma simplificação, nenhum economista/banqueiro central pensa de acordo com o modelo básico dos manuais. Aliás, nesse modelo simplificado a taxa de juro do BC não tem qualquer impacto. Haverá algum economista que acredite nisso!
Krugman diz uma coisa semelhante, a propósito desse texto do BoE:
krugman.blogs.nytimes.com/2014/04/28/a-monetary-puzzle/
3.«não é preciso depósitos para emprestar dinheiro. O dinheiro emprestado não é o dinheiro poupado»
Este debate do que veio primeiro, se o ovo ou a galinha, é irrelevante a nível micro. Há milhares de empréstimos e depósitos a acontecer ao mesmo tempo.
Contudo um banco tem de cumprir normas sobre as suas reservas, de modo que o valor total de reservas (logo de depósitos) condiciona a quantidade de empréstimos que o banco pode fazer. A nível macro, é a poupança que cria empréstimos.
4. «A ideia é o soberano procurar “secar” a moeda em circulação em período de expansão, controlando assim os empréstimos possíveis, sempre que haja ameaça de inflação e “inundar” de moeda o mercado em períodos de contração, colocando a gestão monetária funcionar contra o ciclo económico»
Isto é uma mão cheia de nada. Como é que o Estado secaria a moeda? Obrigando as empresas e as famílias a devolverem o crédito imediatamente?
E como é que colocaria a gestão monetária contra o ciclo económico? Influenciando as taxas de juro… como já faz hoje?