A convenção da dívida para totós

A dívida é tudo aquilo sobre o qual assumimos um compromisso. Se nós formos o Estado, a dívida financeira são as responsabilidades financeiras do Estado. Se nos ativermos a esta definição simples, para alcançarmos o valor actual da dívida do Estado devemos tomar todas as responsabilidades incorridas em seu nome, sejam elas diretas (por exemplo verbas pedidas de empréstimo pelo próprio Estado) ou indirectas (por exemplo avais concedidos pelo Estado a empresas públicas). Se considerarmos que o Estado é uma pessoa de bem, entre as suas responsabilidades temos obrigatoriamente de incluir as que decorrem dos contratos por este assumidos que impliquem responsabilidades futuras. Por exemplo, os valores das reformas de quem desconta para o sistema de Segurança Social com esse fim, ou seja, o de receber uma pensão quando terminar a sua carreira ativa.

Face a esta definição natural de dívida fará todo o sentido assumirmos que a dívida do Estado no momento actual serão não só os 124% actualmente registados mas também os vários anos de pensões a pagar aos já reformados bem como aos ativos que já tenham ganho algum direito a pensão segundo a lei em vigor. Confesso que não tenho dados para calcular o seguramente gigantesco valor de que estamos a falar.

Em suma, este gigantesco número que será certamente superior a vários anos da riqueza nacional, depende:

1)      da nossa definição simples de dívida (recorde-se que estamos perante um exemplo académico, no qual estamos a considerar que não haverá qualquer receita relevante para fazer face às responsabilidades ao longo dos anos para os quais estas estão assumidas)  e de

2)      acharmos que o Estado fará tudo para honrar os seus compromissos.*

Que extrair daqui? Que relevo tem esta constatação do óbvio? O leitor que responda. Se não era óbvio para si, admito que já tenha cumprido algum papel.

Esta não é, contudo, a convenção de dívida usada, por exemplo, pelo Eurostat (autoridade estatísticas da União Europeia que estabelece juntamente com o INE, o valor da dívida pública, entre muitos outros). Podia ser, se calhar até fazia sentido que fosse a definição universal da dívida financeira bruta de um Estado, mas não é. Nessa definição, na realidade, ficam de fora muito mais responsabilidades do Estado como alguns mais atentos à evolução da convenção e ao rigor com que é aplicada saberão. No fundo, todos sabemos que tais responsabilidades existem e com acesso aos dados certos todos poderíamos apurar o seu valor mas, por razões que não vou aqui debater, não o fazemos, ou pelo menos não o consideramos relevante para comparações internacionais ou para aferir da solvabilidade de um Estado ou para informar os mercados. É assim em Portugal e em qualquer outro país que tenha aderido às convenções financeiras internacionais.

Agora expliquem-me lá o que é que isto tem a ver com a interpretação mais extremada (diria absurda) da decisão do Tribunal Constitucional? É preciso um pretexto tão estapafúrdio para justificar este exercício académico que aqui fizemos? Ou o que releva é, no final de contas, disfarçar de curiosidade científica mais uma bojarda da mais reles política em cima de um dos raros órgãos de soberania que tem cumprido com o que se espera dele?

Termino recordando que o exemplo aqui dado e que foi surfado no texto de Ricardo Reis (“Devemos muito mais do que há uma semana”) tem sido recorrentemente utilizado ao longo dos últimos anos dos dois lados do Atlântico e em particular durante a campanha presidencial Norte-Americana, em discussões fortemente politizadas e, em muitos casos, pejadas de forte desonestidade intelectual pelos propósitos alarmistas que visam cumprir junto de um público menos preparado. Do lado de cá do Atlântico recordo por exemplo, uma “descoberta” feita sobre a Alemanha ver, por exemplo aqui:  http://www.opais.net/pt/opais/?det=23524).

* A relação de dependência entre contribuições presentes e pensões a ser pagas é uma simplificação e não faz parte efectiva do contrato. Mas é, a prática corrente, de facto. Em todo o caso, convém sublinhar que no passado durante vários anos (patrocinada por governos do PSD) houve dotações orçamentais (uma parte da TSU) que estavam contratualizadas serem transferidas para reforçar os fundos de reserva da Segurança Social que não o foram, pondo em perigo a sustentabilidade do sistema a longo prazo. Nada impede que um movimento inverso não possa ser implementado no futuro para que o Estado honre os seus compromissos. Dependerá da vontade política e, claro, da existência ou não de riqueza tributável.

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