Perante duas soluções eficazes qual venderia: a que lhe dá mais lucro ou menos?

Portuguesa apresenta hoje biossensor portátil capaz de detetar cancro
(…) Em declarações à agência Lusa, Goreti Sales explicou que o “aparelho” a desenvolver representa um “novo conceito de diagnóstico” que irá permitir a deteção “bastante precoce” do cancro no útero, cólon e retal, numa fase inicial.

Este projeto, da unidade de investigação BioMark – Sensor Research do Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP) recebeu, em 2012, um milhão de euros do European Research Council o que permitiu “montar” uma estrutura física e captar os recursos humanos necessários para o desenvolvimento do biossensor.

“O 3’Ps representa um novo conceito de diagnóstico que vai permitir a um médico, em qualquer consultório, fazer uma análise rápida, indolor e baratinha de forma a detectar os marcadores de certos tipos de cancros”, resumiu Goreti Sales.

O equipamento “será uma espécie de caixinha em plástico ou vidro, relativamente pequena, e que custará entre 6 e 10 euros”, adiantou, realçando que não são as “razões económicas ou comerciais” que motivaram a investigação e motivam agora a concretização do 3’Ps. (…)

in Visão

Opinião:
O título é intencionalmente provocador, mas creio que inspirador de debate face a um problema complicado dos nossos dias.
A propósito do caso hoje divulgado na revista Visão, assaltou-me um dilema que vai fazendo um novo caminho, em particular quando se reflete sobre o investimento público (ou a falta dele) a nível mundial, na investigação e desenvolvimento na área da saúde. Refiro-me à vantagem em se entregar ao sector privado a responsabilidade pelo fundamental da investigação e desenvolvimento na saúde, algo que é, creio, um processo consolidado e em aceleração (se não na formação de quem investiga, pelo menos na fase subsequente).
O racional habitual é simples: os privados terão mais incentivos do que o Estado para desenvolver com maior eficiência novos produtos pois receberão como prémio a possibilidade de, por via das patentes que venham a criar, recolherem rendas assinaláveis associadas à venda dos produtos e técnicas que descubram para suprir necessidades na área da saúde. O ganho dos privados sobre o público (em termos sociais) será então real se a margem de lucro for inferior aos supostos desperdícios de eficiência resultantes do sector público isto, admitindo que tudo o resto (a qualidade, quantidade e eficácia das soluções, bem como as condições de investimento disponível à partida, etc) é comparável.
Perante casos como o da notícia destacada, a que se juntam muitos outros por esse mundo fora, este racional parece-me contudo simplista. Em particular, o último parágrafo que citamos é perturbador e enunciador de um dos vários problemas que podem assaltar o primado da vantagem da investigação privada exclusiva (ou quase). Desde logo porque perante duas vias de investigação possíveis para suprir uma mesma necessidade, estando a procura para a solução garantida à partida (como muitas vezes acontece quando o que está em causa é a saúde) e havendo uma crescente concentração da investigação em poucas e gigantescas empresas, o risco de se seguir sistematicamente pela via de investigação que parecer mais promissora em termos da margem comercial (e volume de lucro) é elevado. Se assim for, a solução apresentada não será a mais vantajosa para os pacientes: garante a cura/tratamento mas não garante o menor custo possível e, como tal, pode revelar-se um forte obstáculo ao próprio acesso de muitos a esse tratamento.
Não é incomum, por exemplo, numa perspetiva mais maquiavélica, ouvir relatos de grandes farmacêuticas zelarem por patentear vários métodos alternativos de solução para um mesmo problema com o fito único de engavetarem os mais económicos (impedindo que outros prossigam a investigação por essas vias) e “oferecerem” aos pacientes os mais rentistas.
Se juntarmos a isto o facto de que é extremamente complicado uma nova empresa entrar em concorrência neste sector (os custos de capital são elevadíssimos) temos o potencial para um mercado protegido e disfuncional.
No fundo, estamos perante um sério risco de uma forte distorção daquelas que deveriam ser as condições habituais nas quais o mercado poderia de facto funcionar eficazmente, oferecendo uma solução socialmente mais adequada em termos de custo-benefício. Sim, a medicina evolui mas certamente longe do que deveria ser  a relação ideal e possível.
Se juntarmos a tudo isto relatos preocupantes de revolving door juntos dos subsistentes centros de investigação públicos, nos quais muitos dos investigadores, reguladores e supervisores estão sob permanente tensão de aliciamento por parte da indústria privada (que assim procura capturar as últimas “ameaças” à sua posição), o cenário torna-se muito preocupante. Repito, preocupante, não por serem privados mas por não estarmos perante os habituais equilíbrios de força que se geram num mercado de concorrência saudável.
No final de contas, como leigo, tenho sido levado a perguntar sempre que constato o contínuo aumento dos custos com a saúde, até que ponto, oculto sobre o inquestionável processo de envelhecimento demográfico (que implica maior consumo em saúde), não existirá uma outra razão poderosa, indesejável e evitável, que está a encarecer progressivamente a despesa com cuidados de saúde a nível mundial e que se centra numa progressão das rendas pagas ao inovador em excesso do que poderão ser soluções mais económicas e igualmente eficientes. Daí o significativo último parágrafo da notícia que acima se sublinhou.
Em suma, até prova em contrário, o investimento público em saúde, não orientado para o lucro e produzido por técnicos independentes, usando redes de partilha de conhecimento de âmbito internacional (como as disponíveis nas Universidades) parece-me a única ameaça eficaz aos incentivos adversos que estarão a enviesar a investigação privada. Ironicamente, a competição oferecida pelo Estado, em termos concorrenciais, pode ser vital para garantir que o mercado recupere as características desejáveis para o seu bom funcionamento.
Uma última nota: o prazo de validade das patentes é uma outra forma que tem sido dirimida e que deverá manter-se, saudavelmente, como um processo de tensão permanente. De um lado, a indústria a querer prolonga-las justificando-o com a necessidade de acumular capital para continuar a desenvolver investigação (o que não é mentira) e do outros os Estados que procuram encontrar o momento justo para transmitir para a sociedade uma redução do custo da saúde limitando temporalmente a exclusividade de exploração ao inventor e permitindo que a inovação possa ser distribuída por outros interessados, fazendo-a chegar a mais pessoas (veja-se o caso dos genéricos). Outra via, corrente em vários países é controlar administrativamente os preços, por exemplo, do medicamento. Tudo remédios para um mercado que, como disse, parece muito disfuncional.
Este será seguramente um tema muito relevante para o nosso futuro coletivo nas décadas que se avizinham. Da parte que me toca, tentarei reduzir os meus níveis de ignorância.Saúde!

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